1.Da experiência que têm com divorciados
(independentemente de serem mulheres, homens, com filhos ou sem filhos) quais
são os erros mais comuns? Isto é, quais são os maus hábitos que se criam,
muitas vezes sem a pessoa se aperceber?
R:
Como
profissional da área da saúde mental, não a vou concerteza surpreender se lhe
disser que um erro comum é a não elaboração do luto do divórcio, experiência que está cotada como um dos acontecimentos
mais stressantes na vida de um indivíduo.
Como noutras
situações das nossas vidas – a morte de uma pessoa querida, por exemplo –
também o divórcio exige um processo de luto frequentemente negado e desvalorizado.
Um divórcio implica perdas que têm de ser reconhecidas e elaboradas e que podem
ser extremamente dolorosas – por exemplo, o reconhecimento da perda do amor do
parceiro.
O divórcio
obriga também a mudanças de hábitos e ritmos. Veja-se, por exemplo, que a
pessoa pode estar já desabituada de passar um fim-de-semana sozinha. As
mudanças do dia-a-dia podem ser bem notadas e ainda assim haver uma negação do
sofrimento associado a esta experiência.
Se o
indivíduo tiver uma personalidade susceptível para não pensar os lutos, então
ele pode fazer uma fuga à dor incorrendo em comportamentos agidos. Vamos pensar
na hipótese de colmatar um sentimento de vazio com uma sobrecompensação
alimentar ou quando ocorre uma transferência da dependência que o indivíduo
tinha do ex-companheiro para uma substância aditiva, como o alcóol.
Evidentemente, a capacidade de resiliência a este episódio de vida depende de
muitos factores, como seja a capacidade prévia do sujeito para se pensar e o
suporte afectivo percebido.
É sabido que
se o indivíduo tiver uma personalidade depressigena, face à perda do outro –
companheiro e/ou perda da relação com os filhos – então pode estar o cenário
montado para se desenvolver uma depressão. Sabemos que a pessoa com grande dor
interior tende a isolar-se. Esta será precisamente uma atitude a contariar. A
pessoa que sabe reconhecer a necessidade de ajuda é seguramente mais hábil e
está mais armadilhada para enfrentar as adversidades.
Mesmo quando
um dos elementos do casal obtem alívio pelo divórcio – caso em que a pessoa
estava a sentir-se aniquilada pelo companheiro, por exemplo – ainda assim, há um
luto a elaborar que é o do projecto. Vou verificando na clínica que muitas
pessoas divorciadas têm um sentimento que falharam, que não foram capazes de
dar continuidade ao projecto “a dois”. Ora é importante lembrar que as relações
estão em permanente construção e que não devem ser resumidas de forma linear a
um erro ou falha, pois têm toda uma história e são sujeitas a multiplos
factores que se intrinsecam entre eles.
Um erro não
tão invulgar dar-se uma confusão entre divórcio e separação. Vejamos como
correspondem a estados diferentes. Um casal pode estar a viver numa mesma casa
e ainda assim estar separado há muito tempo. É muito frequente constatarmos que
um dos elementos do casal já se sentia separado do outro muito tempo antes de
surgir o divórcio. Há casais que se mantêm juntos porque exercem uma função
parental, mas que deixaram de ser um casal conjugal. Por exemplo, quando o
casal já não tem intimidade e deixou de partilhar o espaço em que os pensamentos
de ambos se encontram e crescem em conjunto. Tantas e tantas vezes, homem e
mulher coabitam o mesmo espaço sem que aconteça um autêntico encontro do Eu de
cada um. Nestes casos, as pessoas acabam por se habituarem a uma certa
distância, deixando mesmo de se conhecerem.
Mas o
contrário também é possível: duas pessoas estarem divorciadas mas não separadas.
Há pessoas que se mantêm ligadas mesmo depois de estar concluído o processo de
divórcio. Isto pode acontecer por uma dificuldade de estar só depois de vários
anos a viver em co-dependência. Isto é nítido nos casos em que uma das pessoas
mantém o controlo da vida da outra, mesmo depois do divórcio. Nessas situações,
há uma das pessoas que está a resistir ao luto, ou seja, ao trabalho de
aceitação da nova realidade. Todos conhecemos casos em que os filhos dos
divorciados são usados como armas de ataque aos ex-parceiros, ora habitualmente
isso resulta de uma negação da nova realidade e, lá está, da negação da perda
de uma vida como ela foi um dia. Isto é muito desgastante para todas as partes.
Já começa a estar desperta uma consciência dos casais para as dificuldades do
divórcio e por isso aparecem na clínica pedidos de casais para que sejam
ajudados a separarem-se, mas isto só pode acontecer se não houver muita raiva,
zanga e mágoa de parte a parte.
Quando um processo
de luto é demasiado prolongado e intenso, pode acontecer que o indivíduo tenha
muita dificuldade em organizar recursos para se restabelecer numa nova
dinâmica. É preciso lembrar que os divórcios conduzem à perda de relações
também com outras pessoas do sistema familiar e do sistema social. Afinal,
perdem-se amigos que mantinham relação com o casal e podem surgir afectos
negativos da parte dos familiares do ex-parceiro. As relações que desenvolvemos
são redes que nos protegem, para aqueles que estiverem mais desprotegidos neste
campo, que viveram uma relação conjugal sem alimentarem os outros sistemas,
esta reestruturação será bem mais difícil.
Na verdade,
enquanto o próprio não fizer o seu luto estará preso a uma não-realidade.
Quando elaboramos um luto estamos a fazer uma separação de algo, a aceitar as
perdas, e estamos também a dar uma oportunidade para novos investimentos e para
partir à descoberta do próprio Eu. É por isso que um divórcio, como situação de
crise, pode ser uma possibilidade de restabelecer o equilíbrio do próprio.
2.Que conselhos práticos daria a um recente divorciado
para não cair em maus hábitos?
R:
Parece-me
que se depreenderá da minha resposta anterior que o primeiro desses conselhos
seria: dê-se tempo e espaço para elaborar o seu luto. Aceite os sentimentos de
tristeza e dor como necessários ao trabalho de cura. Dito de outra forma,
aceite que há feridas que precisam de ser pensadas para que possam sarar melhor.
Se a dor for demasiado intensa e insuportável, peça ajuda, caso contrário
poderá cair no risco de ter comportamentos agidos, impulsivos e não pensados
que o levam a uma maior desorganização. Exemplos desses comportamentos seriam
as relações agidas, com fraco envolvimento, que o indivíduo procura para evitar
a angústia da separação mas que têm tudo para falharem e que só vão reforçar
ainda mais o sentimento de frustração e de desvalorização do próprio.
Uma viva recomendação
seria que a pessoa divorciada se deixe cuidar, rodeando-se daqueles que lhe
querem bem e que lhe podem relembrar a sua identidade mas também que o ajudem
com questões de ordem prática.
Para aquele
elemento que sai de casa, por exemplo, há todo um conjunto de tarefas exigentes
por resolver. Veja-se a escolha de um novo espaço para morar e o trabalho de
montar uma nova casa. Estas questões obrigam a muita disponibilidade, de tempo,
económica e também de disponibilidade interior. Porque não reconhecer que os
amigos e familiares podem ser uma boa mão de obra? Assim, se for escolher uma
casa, escolha uma zona com vizinhos amigos, que possam representar um importante
suporte. Se lhe for possível, escolha um espaço para a nova habitação que não
obrigue a perda de qualidade de vida, por exemplo, a ter de dispender mais
tempo para se deslocar de casa para o trabalho, porque seguramente o tempo vai
ser-lhe necessário para realizar novas obrigações que antes partilhava com
outra pessoa. Se à pessoa divorciada faltar tempo e ânimo, então a disposição
para fazer refeições saudáveis, para ter boas noites de sono ou para investir
nas relações com os outros, tudo isto irá ficar em falência.
Para aqueles
que experimentam o sentimento de se estarem a deixar deprimir perdendo os
prazeres do dia-a-dia e a capacidade de se espantarem com a vida, a esses
recomendaria que usassem o período pós-divórcio para um auto-conhecimento
recorrendo, por exemplo, à psicoterapia. As psicoterapias permitem o indivíduo
entender o seu mundo interior e também os comportamentos do próprio, ao mesmo
tempo que são uma oportunidade de iniciar uma relação. Claro que esta relação é
diferente de todas as outras, porque é terapêutica, mas é uma relação que se pretende
autêntica e que renova a pessoa de esperança e de auto-estima, de forma a
recuperar o sentido da vida.
3.Por norma, quem tem mais tendência para maus
hábitos: mulheres ou homens?
R:
Já tenho
debatido esta ideia com outros profissionais que exercem clínica e que
partilham comigo a suspeita que as mulheres suportarão melhor o sentimento de
estarem consigo próprias. Ser capaz de estar consigo mesmo é não sentir a solidão.
Depois, tradicionalmente,
as mulheres estarão mais habituadas a cuidarem de um conjunto de tarefas em
simultâneo e parece-me que isso lhes pode dar uma certa vantagem no que
respeita ao desafio de resolverem muitas coisas. E também pedem mais ajuda.
É sabido que
um maior número de mulheres pede apoio psicológico. Isto poderia ser entendido
como tendo os homens mais recursos psicológicos para lidarem com as situações
de crise, mas estou em crer que não se pode fazer essa leitura. Parece-me, ao
invés, que as mulheres expressam de forma mais espontânea o que sentem e pensam,
e que isso lhes dá menos resistência ao trabalho psicoterapêutico.
Partindo da
ideia que os maus hábitos estarão relacionados com resistência a pensar aquilo
que faz sofrer e também com a dificuldade em pedir ajuda profissional, quase me
atrevia a dizer que as mulheres têm menor risco. A pessoa que é capaz de
reconhecer os seus piores hábitos e a falta de saúde psíquica e física, recorre
mais facilmente também às consultas médicas.
4. As realidades inesperadas que o divórcio traz não
têm necessariamente que ser más... há quem, após um divórcio, comece a cuidar
mais do corpo, a fazer exercício físico, por exemplo...
Sim e há quem recupere
saúde: fisica e psíquica! É preciso não esquecer que há relações francamente
patológicas em que os cônjuges se atacam e agridem. De facto, há padrões de
relação que, ao invés de serem uma forma de crescimento de cada um, são
esmagamentos do outro e um violento ataque à individualidade do outro. Na
prática clínica, constatamos que um indivíduo que tenha vivido uma relação que
o humilhou ou controlou durante anos, pode ficar doente e desenvolver
patologias de tipo psicossomático. Nestes casos torna-se bem evidente a
recuperação da saúde, logo após o divórcio ou a médio prazo!
Mas é também preciso lembrar
que quando o indivíduo se divorcia, tem a sensação de ter que reunir esforços
para dar início a uma nova etapa da sua vida. Não raras vezes, as pessoas saem
de um divórcio com o sentimento que investiram grande parte das suas vidas num
projecto em que havia o acordo de cuidarem uma da outra, mas que a partir de
agora têm a obrigação de olharem por si mesmas. Cuidar do corpo e da psique,
depois de um divórcio, pode ser um sinal que o luto está terminado e que a
pessoa está apta a lançar-se ao futuro. O indivíduo mais saudável e adaptado à
realidade, que conseguiu aceitar o fim da relação, seguramente vai querer
dispôr-se ao investimento numa nova relação. Cuidar bem da relação do próprio consigo
mesmo (com o seu corpo, sexualidade e mente) é necessário para que o indivíduo
possa descobrir-se numa relação nova. É preciso que o indivíduo recupere a possibilidade
de se espantar com a vida!
Entrevista cedida pela Dra. Alexandra Leonardo à Revista Saber Viver, Junho 2014